Todas por uma: o resgate à ancestralidade da mulher negra é uma luta diária
Da naturalização nos espaços subalternos ao entendimento da negritude. Qual foi o seu despertar como mulher negra?
De segunda-feira a sexta-feira, por volta das 5h30, um instrumento musical que não sei ao certo qual é me desperta. Em seguida, Emicida traz a sua voz inconfundível, sempre utilizada para mascarar uma série de denúncias e descontentamentos. Numa das mais doces de suas melodias, Leandro Roque, de 38 anos, utiliza de gírias paulistas e alusões à Morfeu, o deus grego que representa o sonho, para expor algo verdadeiramente grande: a luta cotidiana das mulheres negras.
Confesso que aquela que vos escreve tampouco tinha ideia do motivo por trás da escolha do despertador, até o dia de hoje. Emicida, assim como muitos de nós, foi criado por uma mulher negra, possivelmente educada por outras tantas que vieram antes dela e que hoje representam cerca de 28% da população brasileira. Isso é quase ¼ do Brasil, o restante é representado por mulheres indígenas ou brancas e homens indígenas, pretos e brancos. Acho que agora temos dimensão do quão grande é a presença de mulheres negras no Brasil.
Todo mundo sabe, menos você
Mesmo assim, me pergunto como demorei quase 13 anos da minha vida para me identificar como uma mulher negra. Na escola, é evidente que tenhamos o primeiro baque: não somos meninas brancas, não somos tratadas como tal, nossa aparência não é semelhante e nosso cabelo, que tanto me esforcei para ser, não era nem de longe semelhante. O que eu quero dizer é que nós sempre sabemos o que não somos, desde do início, mas demoramos muito para ter certeza do que realmente somos. E por que?
O “certo” seria: se não é A, logo, só pode ser B. Não no meu caso. Precisei de uma série de escritos da Angela Davis, Djamila Ribeiro, alguns artigos sobre colorismo e o 1º lugar na 1ª edição do Concurso de Redação e Desenho Teresa de Benguela para sair da terceira pessoa e contar a história do meu povo como narradora personagem. Minha conquista no concurso se deu através do texto “Passos de uma heroína”, que escrevi sobre Dandara dos Palmares. E falando da guerreira quilombola, inclusive, tem muito dela na Dona Maria, personagem principal da música do Emicida que me desperta toda semana.
Ainda estamos no passado
Dona Maria, mesmo que separada de Dandara por quase três séculos de história, é atravessada por uma série de agressões sociais muito parecidas, por incrível que pareça a diferença de tempo. É evidente que de lá para cá tenhamos acumulado uma série de conquistas, como os anticoncepcionais, direito ao voto, trabalho e ir na padaria sem a presença de um homem. E tudo bem, isso tudo seria razoavelmente bom se fossemos mulheres brancas, mas cá entre nós, existem uma série de “mas” e vírgulas que enfrentamos dentro de cada uma dessas conquistas.
Entre homens e mulheres, apenas 18% das pessoas negras no Brasil estão ocupando cargos de poder atualmente. Na política, no mercado de trabalho ou no cotidiano, as coisas são bem diferentes pra gente. Até temos a oportunidade de ser liderança, mas antes precisamos ter conquistado espaço em boas instituições de ensino e mostrar que realmente merecemos estar ali. Mas isso não é o que todos, independente da raça ou gênero, devem fazer?
Você pode pensar, e não te culpo. Mas esse problema tem raízes históricas profundas e complexas que vão do legado da escravidão, colonização, discriminação, passam pelas condições socioeconômicas da população negra, à ausência de representatividade nas lideranças, e principalmente, nas políticas públicas de acesso a educação. De acordo com o iDados, 33,2% das mulheres negras com diploma de nível superior estão ocupando cargos que não precisam de diploma. Se isso não é um resquício explícito das estruturas espregatórias advindas da escravidão, eu não sei o que é. Claro, o desemprego no Brasil existe e é um problema real, mas ele pode ser ainda mais agressivo se você for uma mulher negra que não se rende aos padrões estéticos abusivos da sociedade.
Quem vai ser inspiração?
Um dos pontos principais para a formação desses pensamentos foi a ausência de mulheres como eu em cargos que eu um dia sonhei conquistar, por exemplo. Desde a infância era muito difícil ver as mulheres que me rodeiam em cargos que não fossem o de subserviência, e mesmo sem entender eu me via mais próxima disso do que de qualquer outra realidade que eu pudesse imaginar. Isso é muito comum para nós, que somos ou já fomos pessoas negras e pobres. Perceba, mais uma vez, a música “A Ordem Natural das Coisas”, quando o Emicida diz: “A merendeira desce, o ônibus sai. Dona Maria já se foi, só depois é que o sol nasce (…). E o sol só vem depois, é o astro rei, ok, mas vem depois”.
O cotidiano da Dona Maria é semelhante ao de muitas mulheres da minha família, cuja rotina por muitos anos começou antes mesmo da aparição dos primeiros raios de luz do dia. Uma vida dura, cruel e difícil, mas necessária para manter a família, às vezes sozinha. E aqui, talvez eu tenha alcançado a resposta do “por que esse é o meu despertador?”.
Todos os dias, quando eu acordo, lembro que antes, ser Dona Maria era o que tinha pra mim, não o que tem hoje. Seria incompreensível falar que isso é um motivo de vitória, porque não é, e sim de sacrifício. Agradeço a todas as “Donas Marias” que foram sol em minha vida, e mesmo na escuridão fizeram de tudo para que hoje, nós, mulheres negras em ascensão, consigamos nos imaginar em cargos de liderança, entendendo a necessidade de movimentar caso “a ordem natural das coisas” seja a nossa ausência no poder.
No entanto, essa “movimentação” que falo, não é explicitamente política. Não, nenhuma das minhas ancestrais teve tempo ou letramento para se autodeclarar militante. Ao mesmo tempo, todas elas têm um pouco da mesma insatisfação de Dandara para entender que são movidas por uma corrida desigual, onde compartilham de uma largada quilômetros antes das mulheres brancas, mas com a mesma marca de chegada. Mesmo tardiamente, compreenderam pouco a pouco o que vos foi tirado pelo racismo estrutural. E tiveram o dobro de força para nos ensinar a não ser o que eles esperam que nós sejamos.
Todos os dias quando acordo, todas as minhas ancestrais acordam comigo, e dessa vez, conscientemente, lutamos pelo lugar que nos foi roubado.