Mangueira: enredo vai mostrar permanência da cultura Bantu no Rio
À Flor da Terra – No Rio da Negritude Entre Dores e Paixões
Muitas das palavras que o brasileiro fala e escreve não têm origem portuguesa, mas africana. Por exemplo: quiabo, angu, quilombo, samba, quitute e tantas outras são do idioma Bantu, que se refere a um grupo de línguas e culturas originários da região dos Grandes Lagos da África, onde atualmente se localizam países como Tanzânia, Quênia e Uganda, incluindo a África do Sul, Angola, Moçambique, Zimbábue e outros países.
No Brasil, quando os ex-escravos queriam se proteger iam para as chamadas Casas de Zungu. Elas representavam um pedaço da história e cultura afro-brasileira. Originalmente, os zungus eram locais onde os ex-escravos se reuniam para cozinhar e compartilhar comida, especialmente o angu, um prato à base de milho moído.
Os zungus também eram centros de resistência e cultura africana. Lugares onde os eles podiam se reunir, compartilhar histórias, cantar, dançar e praticar suas tradições. Eram verdadeiros quilombos dentro das cidades, onde os africanos e seus descendentes podiam se sentir em casa.
É essa história que o enredo da Mangueira, para o carnaval deste ano, vai dar visibilidade: a cultura dos povos Bantu no Rio de Janeiro. E a escolha começou quando o economista, pesquisador e professor, Sidnei França, foi convidado para ser carnavalesco da Verde e Rosa. A presidente da escola, Guanayra Firmino, não tinha um enredo pré-estabelecido e deu liberdade para ele escolher o que quisesse.
E assim foi feito, com base em muita pesquisa, Sidnei desenvolveu o enredo autoral em cima do tema À Flor da Terra – No Rio da Negritude Entre Dores e Paixões, que surgiu da leitura de uma dissertação de mestrado do professor de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Júlio César Medeiros, do livro A Flor da Terra no Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro. A publicação fala da chegada dos pretos escravizados na diáspora que não tiveram, um olhar humano e sensível do colonizador.
Um dos maiores campeões do carnaval de São Paulo, em 2009, 2012, 2013 e 2014 pela Mocidade Alegre, onde filho de uma passista frequentava a escola desde menino; e um campeonato pela Águia de Ouro em 2020, Sidnei França está confiante que o enredo de 2025 da Estação Primeira tem condição de lutar pelo título no Grupo Especial, considerado a elite do carnaval do Rio.
“Aqui chegaram pretos enfermos outros até já mortos nos porões dos navios, os tumbeiros e eles eram jogados na região da Pequena África, próximo ao Cais do Valongo [região portuária do Rio].Ali era uma cova rasa, uma cova onde não havia identificação de corpos e não havia respeito”, disse à Agência Brasil, destacando um dos motivos para contar essa história que marca muito as características da sociedade carioca que mistura indígenas, colonizadores europeus e, principalmente, população preta que veio escravizada de África.
“A morte para o povo preto no Rio de Janeiro não era a morte física, a ausência da vida. Era o rompimento com os laços ancestrais que o homem branco causava, que inclusive era uma ferramenta de colonização. Quando você rompe com a questão identitária, você mata duas vezes”, completou, dizendo que todos esses códigos estão presentes na escolha do tema para o carnaval 2025 da Mangueira, prontamente entendidos pela diretoria da escola e gerando imediato sentimento de identificação.
Segundo Sidnei, 80% dos negros desembarcados no Rio eram da cultura Bantu da África Central, que entre outros países compreende os dois Congos, Angola. A predominância levou à escolha de basear o enredo na cultura Bantu Nosso discurso é bantu até em respeito a essa predominância, essa maioria que tem nas estatísticas. A cultura Bantu entende essa travessia como uma força espiritual que vai muito além de um tráfico que o homem branco praticou.
“A ideia não é reforçar o viés de passividade, de conformismo e muito menos de vitimização jamais. Vamos mostrar da perspectiva preta o tempo inteiro”, revelou,
A identificação do Morro da Mangueira e de componentes da escola com o enredo foi automática. Adoram se reconhecer no tema que a escola apresenta na Sapucaí. Na visão do carnavalesco por ser uma escola tradicional, quilombada e a única do Grupo Especial do Rio, que tem a sua sede no Morro, na favela de fato, para a Mangueira esse discurso identitário, racial, étnico e até mesmo sociocultural é muito forte. Uma escola como a Mangueira levar para o seu desfile esse discurso da identidade preta essencialmente carioca é muito valoroso.
Enredo
Para contar tudo isso, o carnavalesco dividiu o enredo em setores. O desfile começa pela travessia de pretos escravizados da África para o Rio. Para tratar da religiosidade, segue com as práticas de sincretismo com a identificação de santos católicos com orixás do candomblé e da umbanda, como São Jorge e Ogum, e que ainda hoje são muito fortes e não é percebida como influência Bantu.
No terceiro setor, é que estão as Casas de Zungu.
“Era muito comum os pretos que fugiam se esconderem em um primeiro momento nas Casas de Zungu para ganhar espaço de acolhida. As Casas de Zungu tinham panos brancos nas janelas para justamente como um sinal de Oxalá, ter proteção e assistencialismo de um preto para com o outro. Era Casa de Zungu, porque servia angu. As cozinheiras as pretas velhas, as matriarcas ofereciam pratos de angu para acolher aqueles pretos fugidos e até os escravizados trabalhadores que percorriam as ruas do Rio vendendo produtos dos seus senhores. Levando e trazendo roupa para lavar”, informou, acrescentando que esses locais tinham uma importância política e sócio cultural muito forte.
Segundo o carnavalesco, atualmente foram mapeadas mais de 50 Casas de Zungu no Rio e os imóveis onde eram erguidos hoje já substituídos por outras construções são identificados com placas.
“Isso é comprovação, não é uma espécie de lenda urbana, um factoide, uma fábula romântica da negritude carioca. Isso é fato. Eram espécies de complexos habitacionais, uma espécie de cortiço. Apesar de se chamar Casa de Zungu, não eram como uma casa, era uma espécie de vilarejo, grandes centros de convivência preta do Rio antigo”, completou.
Durante as pesquisas chegou a informação de que esses locais sofriam perseguição da polícia.
“Havia muitas tentativas de apagamento. Existem relatos de desmonte desses espaços. Então construíam uma Casa de Zungu aqui, depois de cinco meses aparecia uma outra”, disse mostrando a resistência dos pretos da época.
“Aí eles [policiais] tinham que conviver com tudo isso, porque imagina qual era o percentual de pretos no Rio de Janeiro. Se eles também fossem muito repressores, virava uma guerra civil, virava um levante. Quantos códigos e a presença Bantu nesse Rio das Casas de Zungu”, concluiu.
O setor seguinte vai caminhar para o século 20 e mostra as contribuições Bantu com o surgimento dos omolocôs que, segundo o carnavalesco se codifica em um sistema religioso e vira a umbanda
“É nesse setor que vamos falar da importância do quiabo, que aliás é uma palavra bantu. Vamos mostrar a importância Bantu no idioma. O Idioma falado e posteriormente escrito por nós brasileiros transformou totalmente. Toda a característica do português praticado no Brasil, diferenciado do português de Portugal, foi firmemente afetado pela tradição Bantu. Então palavras como quitanda, quitute, carinho, dengo, xodó, quiabo, quilombo, samba, bunda é tudo Bantu. Olha quanto está no nosso linguajar presente e a gente não sabe de onde veio”, ressaltou.
A Mangueira vai mostrar também a prática do gurufim, “que durante muito tempo foi praticado no subúrbio carioca que é não chorar a morte, mas festejar, as festas para beber defunto. Isso é bantu. A cultura Bantu não entende que a morte é um fim. É a passagem para uma outra existência”, disse, acrescentando que o Rèveillon de Copacabana é de origem Bantu.
“Muitas pessoas vão para Copacabana todos os anos, se vestem de branco, pulam onda, estouram fogos no céu e não sabem que isso é Bantu. Ainda levam uma rosinha para Iemanjá e depois fala que é contra macumba”, observou.
Quase no encerramento, a escola vai trazer dois ritmos musicais que têm a ver com a cultura Bantu: o samba e o funk.
“O samba é muito Bantu que vem do semba de Angola e o funk dos morros cariocas. Vai se percebendo o quanto a cultura Bantu foi sendo invisibilizada e o que a Mangueira quer é remexer nessa gaveta e trazer essa riqueza cultural. Vai se percebendo o quanto a cultura Bantu foi sendo invisibilizada, e o que a Mangueira quer é remexer nessa gaveta e trazer essa riqueza cultural”.
O último setor o enredo se relaciona com o tempo presente e transforma o desfile da Mangueira em um grande manifesto sociopolítico.
“A Mangueira se veste como uma autoridade da cidade do Rio de Janeiro para debater algumas questões ligadas à marginalização, à invisibilização e traz para o centro do debate a figura do cria”, apontou.
“A figura do cria nos morros cariocas é o nosso amanhã e se o amanhã vai ser próspero e se vai ser iluminado para nos redimir de um presente caótico depende do como a gente vai tratar essas crias. Não adianta jogar essa responsabilidade para essas comunidades como se elas fossem verdadeiros celeiros de tráfico, de criminalidade, de maternidade precoce, de violência explícita com as chamadas balas perdidas “, acrescentou Sidnei.
Cria da Mangueira
Dowglas Diniz, 27 anos, é uma dessas pessoas que fazem parte do projeto da presidente Guanayra Firmino de botar crias da comunidade em funções importantes da escola. Nascido e criado no Morro da Mangueira, ele é um dos intérpretes da Estação Primeira.
“Para mim saber o que os componentes vão sentir por estarem ouvindo a minha voz é motivo de orgulho e de muita honra por ser a voz da minha comunidade, onde nasci e fui criado. Todos os mangueirenses podem confiar em mim, que seremos um só. Sempre vou estar ali cantando e representando essa escola maravilhosa que me fez tornar tudo que sou hoje”, disse à Agência Brasil.
Para Dowglas, ser cria da Mangueira é estar no dia a dia da comunidade, da escola, é subir o morro descalço, ir para a quadra e para o samba.
“Isso para mim é ser cria de verdade. Cria é meter a mão na massa em tudo que a escola precisar. É estar ao lado da escola tanto nos momentos bons, quanto ruins”, salientou.
Como intérprete, Dowglas participa de um dos momentos mais emocionantes dos desfiles das escolas. Para começar a empolgar o público é hora de fazer o chamado “esquenta”, de frente para o setor 1, que são arquibancadas populares, geralmente, ocupadas por torcedores das agremiações, na Passarela do Samba. Os intérpretes costumam cantar sambas de quadra ou de enredo de anos anteriores. Ali também os componentes da bateria entram e fazem uma apresentação para esse público diferenciado porque é muito animado.
“Quando a bateria sobe ali no ‘esquenta’ do setor 1 é um mix de emoções, porque toda a nossa história está entrando na avenida, todo um trabalho de barracão, das pessoas que trabalham um ano inteiro para botar um carnaval na rua, de nós que ensaiamos semanalmente para mostrar tudo naquele dia de espetáculo. Pra mim é muito gratificante, muito emocionante. Ali é como se fosse uma guerra. A nação mangueirense vai com garra e quando a bateria sobe, no setor 1, é aquele aperto no coração e sempre buscando o ideal, sempre buscando o sucesso da Estação Primeira de Mangueira”, descreveu o sentimento.
Trabalho no barracão
O trabalho no barracão na Cidade do Samba para desenvolver tudo que o carnavalesco quer é árduo, mas segundo o costureiro Alisson Cardoso, 27 anos, que entre outras confeccionou fantasias da ala das crianças, é de muito prazer estar ali mais um ano fazendo parte do carnaval do Rio de Janeiro.
“A gente se sente realizado. São vários dias de trabalho, várias horas sem dormir e cada vez que vai chegando mais perto é mais trabalho ainda. No final a gente se sente muito gratificado porque foi muita correria, mas o trabalho ficou bonito e o melhor é saber que foi a gente que fez. Quando é campeão então… espero que este ano seja”, disse à Agência Brasil, completando que já desfilou algumas vezes.
“Mas eu gosto mesmo é de ficar nos bastidores preparando as coisas”, disse Alisson.
Samba
O samba enredo deste ano é mais uma aposta da escola na busca pelo título e promete empolgar ainda mais os componentes que gostaram da composição. O carnavalesco está confiante também com o samba enredo, que para ele tem passagens muito fortes, como o verso que fala ‘o alvo que a bala insiste em achar/lamento informar…um sobrevivente’.
“Se tem uma prática sistêmica na cidade do Rio de colocar os corpos pretos como vulneráveis, cada um que sobrevive a cada dia, é um fracasso para o sistema e uma vitória para a negritude. É um samba muito potente no sentido de entregar a posição do discurso que a escola traz.
França destacou ainda outro momento do samba quando diz que ‘hoje no asfalto a moda é ser cria, quer imitar meu riscado, descolorir o cabelo, bater cabeça no meu terreiro’.
“Isso está falando diretamente de apropriação cultural, ou seja, você me critica tanto, mas também pinta o cabelo, também samba, também faz funk. Acha que está na moda dizer que é macumbeiro e bota uma guia no pescoço. É entregar identidade a quem realmente lhe pertence”, analisou.
“É por isso que o enredo se chama À Flor da Terra: no Rio da negritude entre dores e paixões, ou seja, um eterno duelo da negritude para equilibrar as suas dores e paixões e continuar firme na missão de representar a tradição Bantu que um dia chegou aqui forçadamente mas que hoje encontra no Rio de Janeiro o seu lugar”, concluiu Sidnei França.
Estreia
França se sente privilegiado em começar no carnaval carioca logo na Mangueira. Carnavalesco que até agora desenvolvia enredos em escolas de samba de São Paulo disse que “entrou na casa pela porta da frente”, por estar na Estação Primeira, uma escola tradicional e de muita história no carnaval carioca. O convite recebido por WhatsApp da presidente Guanayra Firmino é lembrado com detalhes.
“Dia 17 de fevereiro de 2024, que foi quando recebi a mensagem, dia dos desfiles das campeãs do carnaval de 2024, 11h30 da manhã, olha como as coisas ficam firmes na memória”, destacou.
A felicidade de estar à frente da Estação Primeira vai além.
“De estar a quase um ano, conhecer intimamente o Morro de Mangueira, as pessoas que fazem a Estação Primeira, andar no Buraco Quente e Chalé, enfim todos os locais [do Morro], e falar que por aqui andou Cartola, Nelson Sargento, Nelson Cavaquinho, Dona Zica, Dona Neuma, mais recentemente Beth Carvalho, Alcione, Delegado, Xangô da Mangueira, que inclusive é pai do nosso mestre-sala. É muito forte e muito simbólico. Mesmo com toda a responsabilidade a mim atribuída, manter um olho brilhando de um menino que se identifica com o samba e com o carnaval e estar na Mangueira é um grande presente na vida”, contou.
A história que a escola vai contar na avenida é de muita identificação com a sua representatividade.
“É tudo muito potente e tudo muito autêntico. É um enredo que só a Mangueira podia levar, pela maneira como ele foi construído, quando você fala da única escola que tem a sua quadra, a sua vivência sambística dentro da sua comunidade, isso é muito forte. Tem discursos, que só a Mangueira pode levar e são eles, a voz do cria, a voz do Morro, a Mangueira fala com pertencimento. É muito verdadeiro. Isso está sendo potencializado pela atual gestão. Que as crianças do hoje entendam qual é a mensagem que a gente está passando e que eles vão ser no futuro”, finalizou França.
A Mangueira será a quarta escola a desfilar no primeiro dia dos desfiles do Grupo Especial, no domingo (2), na Passarela do Samba da Marquês de Sapucaí.
Foto/Fonte: EBC