Agenda anti-gênero de Bolsonaro torna população trans uma inimiga, diz ativista
Agenda anti-gênero de Bolsonaro
O Brasil segue na liderança do ranking de países onde mais pessoas trans foram assassinadas pelo 13º consecutivo, segundo a organização Transgender Europe. Conforme registra dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) divulgado neste 29 de janeiro, Dia Nacional da Visibilidade Trans, 175 mulheres trans foram assassinadas em 2020.
O documento alerta que houve um aumento exponencial dos crimes nos últimos anos.
Somente de 2019 para o ano passado, por exemplo, houve uma alta de 41% dos casos. Chama atenção ainda que os assassinatos tenham acontecido em território nacional mesmo durante a pandemia.
Em entrevista, Bruna Benevides, secretária-geral da Antra e uma das autoras do dossiê, analisa os números apresentados e fatores que estão por trás deles.
Ela afirma que o coronavírus acentuou as condições de extrema vulnerabilidade das mulheres trans que, principalmente, atuam na prostituição e precisaram continuar trabalhando para a sobreviver. O que as deixou ainda mais expostas à violência e a própria contaminação pelo vírus.
No entanto, Benevides argumenta que a perseguição a uma suposta ideologia de gênero protagonizada pelo Palácio do Planalto também insufla a violência nas ruas.
“Observamos que esse aumento desproporcional [de assassinatos] acontece no mesmo momento em que a política governamental, principalmente a federal, admite publicamente uma postura e agenda anti-trans e anti-gênero, inclusive na esfera internacional”, explica a ativista.
“Ao se posicionar publicamente contra o debate da diversidade de gênero, que foi apelidado de uma forma extremamente problemática e que contestamos veementemente, a tal da ideologia de gênero, [o governo] torna a população trans em uma inimiga”, acrescenta.
Segundo Benevides, as falácias estimulam o ódio em cidadãos comuns.
“É um ciclo da violência que se inicia no discurso, que às vezes é dito em forma de piada e que se transforma em uma morte extremamente violenta e cruel.”
Leia e ouça a entrevista na íntegra
Quais são os principais dados apresentados pelo dossiê?
Bruna Benevides – Muitas vezes acabamos indo por uma leitura dos números para tentarmos entender o que está acontecendo no âmbito geral. Os números nos sinalizam a quantidade de casos específicos de assassinatos e que o que dossiê pretende é exatamente levantar o debate sobre aquilo que os números, se forem analisados de forma acrítica, nos revelam.
Fazemos uma análise transversal envolvendo diversos horários sobre educação, exclusão familiar, violência doméstica, falta de acesso a direitos básicos, dificuldade do acesso à saúde.
A omissão do Estado quando não tem políticas específicas e como esses e outros marcadores impactam na violência contra a população trans.
Não há como debater o enfrentamento da violência sem pensar questões e fatores sociais, principalmente essa violência direcionada a grupos minorizados.
Em 2020, vivemos uma pandemia onde imaginamos que devido ao isolamento social os índices iriam cair mas foi exatamente o oposto. E 2020 se torna, então, o ano onde tivemos mais assassinatos em números absolutos contra a população trans.
Infelizmente o Brasil seguiu também, em 2020, como o país que mais assassina pessoas trans no mundo em um ranking de 71 países feito pela Transgender Europe.
O que é preocupante visto que é mais uma no no topo de um ranking que o Brasil lidera a 13 anos. Até o momento não foi tomada nenhuma política efetiva, mesmo com o STF tendo reconhecido a LGBTfobia como crime de racismo.
Foram 175 mulheres trans assassinadas durante a primeira fase da pandemia. Como esse contexto influenciou nesse índice? Há alguma correlação que pode ser feita além da transfobia estrutural?
Observamos que esse aumento desproporcional acontece no mesmo momento em que a política governamental, principalmente o governo federal, admite publicamente, inclusive na esfera internacional, uma postura e agenda anti-trans e anti-gênero.
Ao se posicionar publicamente contra o debate da diversidade de gênero, que foi apelidado de uma forma extremamente problemática e que contestamos veementemente, a tal da ideologia de gênero, [o governo] torna a população trans em uma inimiga.
Porque dizem nos discursos públicos que estamos querendo, de alguma forma, influenciar a sexualidade e identidade de gênero de crianças e etc, toda essa falácia que circula por aí.
As próprias questões de vulnerabilidade levaram as mulheres trans e travestis que são profissionais do sexo a continuar trabalhando durante a pandemia
Isto, quando isso entra na mente do cidadão comum, que não é letrado, que tem dificuldade de acompanhar todos os debates que fazemos de forma aprofundada, muitas das vezes, estimula esse ódio que se reverbera em um assassinato.
É um ciclo da violência que se inicia no discurso, que às vezes é dito em forma de piada. E que se transforma e potencializa no decorrer dessa linha de exclusão em uma morte extremamente violenta e cruel.
Mas, como disse, é óbvio que não é só isso. As próprias questões de vulnerabilidade levaram as mulheres trans e travestis que são profissionais do sexo a continuar trabalhando durante a pandemia, para não perder a fonte de renda.
Muitas delas não tiveram acesso às políticas emergenciais por questões de vulnerabilidade. Não tinham documento, quando tinham não havia respeito à identidade de gênero ou de seu nome social nos próprios aplicativos de cadastro.
É uma população onde a maioria vive em situação de vulnerabilidade e realmente precisou, durante o auge da pandemia, nos momentos mais dolorosos dos primeiros meses, continuar na rua tendo que se prostituir.
E ali se tornou um movimento onde elas eram muito mais expostas, visto que tinha menos policiamento, menos pessoas na rua. Um cenário que favorece a impunidade.
Além disso, também observamos crimes com uma maior intensidade de ódio, uma maior intensidade de golpes, uma maior intensidade da violência com que ele acontece, o que também dialoga com o discurso do ódio.
Um discurso que não mata mas direciona o alvo dessa violência. Quando não leva ao suicídio, ao adoecimento por questões de saúde mental, leva ao assassinato.
E são vários assassinatos: o simbólico, quando as pessoas trans são expulsas do banheiro, quando não tem a identidade de gênero ou nome social respeitado, quando as pessoas trans não são contratadas ou não transitam nos ambientes sociais. E por fim, o assassinato efetivo para aniquilar a existência.
No último ano, entre 74% e 80% dos crimes apresentavam requintes de crueldade. O que seria isso? Uso excessivo da força, vandalização dos corpos, formas associadas de agressões. Além de dar o tiro, por exemplo, espancar a pessoa antes. Pessoas sendo assassinadas apedrejadas à luz do dia sem que ninguém interfira nesse tipo de violência.
Todo esse cenário de crueldade em que as mortes aconteceram denuncia não só o requinte de crueldade mas que se trata de um crime de ódio.
E em relação ao perfil das vítimas? O relatório mostra que 78% das vítimas fatais eram mulheres trans e negras. Isso explicita que a transfobia também carrega o racismo?
Totalmente. Como vimos durante 2020 com o movimento Black Lives Matter, precisamos entender que o racismo tem que estar no centro da discussão. É fundamental para entender como esse 78% de pessoas foram colocadas em uma situação maior de exposição à violência.
Além de negras, são mulheres. A questão de gênero aparece e também, na maioria dos casos, são profissionais do sexo.
O que também denuncia como essas mulheres trans, por exercerem essa atividade devido a dificuldade de entrada no mercado formal de trabalho e a sua identidade de gênero que não é reconhecida como legítima, acabam sendo assassinadas.
Estamos falando de adolescentes que estão sendo assassinadas com requintes de crueldade.
E o racismo vem para consumar esses marcadores e colocar mulheres trans, travestis, negras e periféricas, em geral, as invisíveis entre as invisibilizadas, exatamente no lugar de corpos mais acessíveis para a violência. Corpos mais matáveis.
Sabemos que a expectativa de vida da população trans é de 35 anos, aproximadamente metade da população brasileira. O que o relatório sinaliza quando se considera a idade das vítimas? Houve alguma piora?
É preocupante. Desde 2017, quando começamos a fazer o levantamento, a idade vem caindo. Em 2017, a vítima mais jovem tinha 17 anos. Em 2020, a mais jovem tinha 15 anos. Estamos falando de adolescentes que estão sendo assassinadas com requintes de crueldade.
Tivemos, em 2020, pelo menos 8 assassinatos de pessoas menores e até 18 anos. Além de serem pessoas do gênero feminino e negras, são pessoas jovens, o que impacta, com certeza a expectativa de vida.
Muitas pessoas achavam que estávamos em uma perspectiva de aumentar a expectativa de vida, mas infelizmente, a média de idade das mulheres trans assassinadas é de 29,5 anos. A tendência é que, se não forem tomadas ações emergenciais, é diminuir ainda mais essa expectativa de vida.
E começamos 2021 com o caso de uma menina trans de 13 anos que foi assassinada.
Janeiro, especialmente, que é o mês em que lançamos o dossiê, tem esse perfil de ser esse mês muito violento. Já temos aí, pelo menos, onze assassinatos em 2021 e mais sete tentativas de assassinatos. São 18 ocorrências em 29 dias.
E é um assassinato de uma criança de 13 anos que foi brutalmente assassinada. Foi espancada, foi vitima de pauladas. Essa crueldade realmente precisa ser combatida por meio de ações iniciadas, inclusive, na escola.
O debate sobre identidade, sobre acolhimento das pessoas que apresentam uma identidade de gênero não hegemônica, que não é a do grupo majoritária, precisa acontecer de forma a naturalizar a relação com esses corpos para que não aceitemos mais que, cada vez mais cedo, pessoas trans sejam assassinadas.
O que parece é que a partir dos 13 anos as pessoas trans já podem ser assassinadas.
Começamos 2021 com esses assassinatos e diversos casos pouco solucionados ou que ganham pouca repercussão na mídia. E mais ainda, continuamos com a sinalização negativa de qualquer ação específica para barrar essas violência.
A exemplo da violência contra a mulher. Temos a lei do feminícidio, a lei Maria da Penha, que não resolveram a questão da violência. Essa violência que denunciamos é estrutural, mas esses mecanismos se tornam ferramentas para um enfrentamento efetivo.
No caso da transfobia, da LGBTI, não temos um Estatuto do Idoso, da Criança e do Adolescente, não temos a lei antirracismo. Apesar do STF ter equiparado, ainda vemos uma resistência de operadores de direito e do próprio Judiciário no reconhecimento e aplicação dos qualificadores.
Muitas vezes quando há assassinato de uma pessoa trans, é retirada a motivação da identidade de gênero que denuncia que foi um crime de ódio, em que mora o motivo torpe, ela foi assassinada por ser quem é mas ao mesmo tempo não há esse reconhecimento por conta de uma legislação específica.
Acaba-se intensificando a subnotificação e por isso denunciamos que o Estado não reconhece essa violência, que é específica, e precisa de ações para serem enfrentadas.
Edição: Leandro Melito
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Fonte: Brasil de Fato