Está perdido? Entenda o que disse à CPI o cabo e vendedor de vacina Luiz Dominghetti
Entenda o que Luiz Dominghetti disse à CPI
O depoimento do cabo da Polícia Militar de Minas Gerais Luiz Paulo Dominghetti Pereira, que foi ouvido como representante da empresa estadunidense Davati Medical Supply, aos senadores da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, nesta quinta-feira (1º), deixou mais pontas soltas do que respostas.
A sessão foi uma das mais tumultuadas desde o início dos trabalhos, instalados no dia 27 de abril. Foram pelo menos três os pedidos de prisão do depoente, vindos de senadores da base do governo e da oposição.
O telefone celular de Dominghetti foi apreendido para perícia já durante seu depoimento, e ali mesmo passou por uma análise preliminar, que constatou que um áudio que havia sido oferecido como prova durante a oitiva – envolvendo denunciante de suposta fraude na compra de vacinas da Covaxin – tinha sido previamente editado.
Ao final, o senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da CPI, disse que não mandaria prender o cabo em respeito à familia dele, não sem antes ter lhe dito que “chapéu de otário é marreta”. Veja, abaixo, os principais pontos levantados pelo depoimento de Luiz Paulo Dominghetti Pereira, grande parte deixada sem resposta.
A propina de US$ 1 por dose
Dominghetti confirmou o que disse ao jornal Folha de S.Paulo, que Roberto Ferreira Dias, ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde, cobrou uma propina de US$ 1 por dose de vacina, durante a negociação de 400 milhões de unidades do imunizante produzido pelo laboratório britânico AstraZeneca, em parceria com a Universidade de Oxford. O valor apresentado por Dominghetti teria sido de US$ 3,50 por dose. Com a propina, Dias sugeriu que ele cobrasse US$ 4,50 por dose.
“Ele sempre colocou que se o valor não fosse majorado, não haveria contrato”, disse Dominghetti em relação ao comportamento de Roberto Ferreira Dias. “Quando eu disse não [ao pedido de propina], veio a surpresa do outro lado”, afirmou sobre a reação do coronel Marcelo Blanco e de Roberto Ferreira Dias.
O caso foi primeiro noticiado pela Folha de S. Paulo, na última terça-feira (29). No mesmo dia, Dias foi exonerado do cargo. Já o citado tenente-coronel Marcelo Blanco segue como assessor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde. Ele também teria participado das tratativas para a negociata, como parte do Ministério.
Aos senadores, Dominghetti afirmou que o pedido de propina foi feito, no dia 25 de fevereiro, durante um jantar no restaurante Vasto, no Brasília Shopping. Com Dias, estavam presentes o coronel Marcelo Blanco e supostamente o coronel Alexandre Martinelli Cerqueira, ex-subsecretário de Assuntos Administrativos do Ministério da Saúde. Segundo o presidente da CPI, Omar Aziz (PSC-AM), Blanco confirmou que houve o jantar.
Já Alexandre Martinelli Cerqueira era pessoa que o depoente não sabia dizer o nome, mas, ao ser confrontado com uma foto do militar com cargo no governo, o reconheceu, dizendo que “lhe parecia ser ele”.
O cabo disse ainda que Blanco já vinha conversando diretamente com a empresa Davati, por meio de outro representante da companhia no Brasil, Cristiano Alberto Carvalho, ao lado de Roberto Ferreira Dias.
Em declaração concedida ao jornal Estado de S.Paulo durante os trabalhos da CPI nesta quinta, o presidente da Davati, Herman Cárdenas, afirmou que incluiu o nome de Luiz Paulo Dominghetti Pereira nas comunicações com o governo brasileiro “a pedido”, mas não detalhou de quem.
“Incluímos o nome do Sr. Dominghetti no FCO (oferta) que apresentamos ao governo brasileiro porque nos pediram e presumimos que ele fosse representante deles”, disse Cárdenas, por e-mail.
Segunda tentativa de venda, dessa vez a Élcio Franco
Dominghetti afirma que não aceitou o pedido de propina e, posteriormente, levou a proposta de negociação diretamente ao ex-secretário executivo do Ministério da Saúde, Élcio Franco.
“A reunião com Roberto Ferreira Dias foi infrutífera”, afirmou Dominghetti, que partiu para segunda reunião. Nesse segundo encontro, Élcio Franco afirmou que iria verificar a veracidade da proposta.
O representante Dominghetti foi apresentado a Élcio Franco por Lauricio Monteiro Cruz, servidor do Ministério da Saúde, que, por sua vez, foi apresentado ao policial militar por um reverendo, identificado apenas como “Hamilton”, que seria da ONG Secretaria Nacional de Assuntos Religiosos (SENAH), sediada em Brasília.
Davati foi comunicada do pedido de propina
Sobre a propina, Dominghetti afirmou que comunicou o caso ao representante da empresa Davati Medical Supply no Brasil, Cristiano Alberto Carvalho, e a um coronel reformado da PM de Minas Gerais (chamado de “Romualdo”), que teria levado a denúncia ao deputado federal Cabo Junio Amaral (PSL-MG).
Procurado pela Polícia Legislativa, o restaurante Vasto informou que não tem mais as gravações das câmeras de segurança do dia 25 de fevereiro (data do suposto encontro), a mesma coisa que disse o shopping.
“Não temos mais a gravação. Já se passaram quatro meses. O equipamento registra 30 dias”, informou a assessoria de imprensa do Brasília Shopping a um órgão de imprensa.
Do emaranhado de nomes e conversas trazidos pelo depoente desta quinta, um deles tem ligação com os fatos já sob investigação da CPI. O servidor Roberto Ferreira Dias foi indicado ao cargo na Saúde pelo líder do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR)
O parlamentar está no centro da denúncia do deputado federal Luís Miranda (DEM-DF), de um esquema de fraude na negociação para a compra de 20 milhões de doses do imunizante Covaxin, envolvendo o Ministério da Saúde e a empresa brasileira Precisa Medicamentos, que seria a responsável pela venda da vacina no Brasil, produzida pelo laboratório indiano Bharat Biotech, e que seria comprada com desvio de recursos via superfaturamento pela União.
Marcelo Blanco, Alexandre Martinelli Cerqueira, Élcio Franco e Eduardo Pazuello, que estava à frente do Ministério na época do caso relatado, são todos militares. Com o advento do governo Bolsonaro, mais de 6,3 mil militares ocupam cargos na administração civil federal brasileira atualmente.
Dominghetti afirmou que não tem nenhuma relação contratual com a Davati.
“Havia um acordo de cavalheiros, até porque eu sou funcionário público e não posso assinar contrato”, afirmou o policial militar.
Em outro momento de sua oitiva, ele disse que jamais revelava ser cabo da PM de Minas Gerais quando atuava como representante comercial de empresas farmacêuticas.
Em um e-mail endereçado a Roberto Ferreira Dias, Herman Cárdenas, presidente da Davati Medical Supply, cita Dominghetti como um intermediador entre a empresa e o Ministério da Saúde. Segundo o policial militar, a autorização para fazer a intermediação foi dada pelo próprio Cárdenas. Também foi Cárdenas que determinou a quantidade de 400 milhões de doses para a negociação, segundo o policial e representante de empresas de medicamentos.
Já o laboratório britânico AstraZeneca publicou que todas as negociações são feitas diretamente “por meio de acordos firmados com governos e organizações multilaterais ao redor do mundo, incluindo da Covax Facility, não sendo possível disponibilizar vacinas para o mercado privado ou para governos municipais e estaduais no Brasil”. Também negou que tenha qualquer relação contratual com a empresa Davati Medical Supply, sediada no Texas.
O único contrato da AstraZeneca estabelecido com o Brasil foi feito por meio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), nos dias 8 e 9 de setembro de 2020.
“Nesta quarta-feira (9), a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) assinou o contrato de Encomenda Tecnológica (Etec) com a AstraZeneca, que detém os direitos de produção, distribuição e comercialização da vacina Covid-19 desenvolvida pela Universidade de Oxford”, publicou a própria Casa Civil, à época.
Davati Medical Supply e as suspeitas no Canadá
No início do ano, a Davati Medical Supply tentou vender seis milhões de doses do imunizante da AstraZeneca a grupos indígenas do Canadá, também a US$ 3,50 por dose, mas o negócio não para a frente e gerou denúnicas de fraude e tentativa de golpe. Entre os insumos e medicamentos apresentados pelo portfólio da empresa, não se encontra a vacina da AstraZeneca, como destacou o senador Eduardo Braga (MDB-AM), durante o depoimento de Dominghetti.
Até então, a Davati Medical Supply nunca havia feito qualquer negociação com o Ministério da Saúde. “Quem trouxe a Davati ao Ministério da Saúde fui eu”, afirmou o cabo Dominghetti, que desconhece qualquer relação da empresa com a pasta anterior à sua intermediação.
O áudio editado e a teoria do Cavalo de Troia
Em determinado momento do depoimento, ao ser questionado se algum parlamentar tinha relação de negociação de vacinas com a Davati Medical Supply, Dominghetti afirmou que o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF) procurou o representante da empresa Davati Medical Supply no Brasil, Cristiano Alberto Carvalho, para negociar a compra de doses.
Foi quando Dominghetti reproduziu um áudio em que Miranda conversa com Cristiano Carvalho sobre a negociação de produtos, enviado pelo próprio representante da Davati (Carvalho) ao policial militar.
Na conversa, fala-se de negociações de compra e venda de produtos relacionados ao campo da saúde, mas não fica claro quais produtos são esses. O depoente deu a entender se tratar de tratativas para aquisição de vacinas, mas ressalvou:
“Senti que Cristiano e o deputado Luis Miranda teriam algumas tratativas comerciais, mas o que foram, somente o Cristiano [Alberto Carvalho] pode elucidar”.
Paralelamente, em entrevista coletiva também concedida durante o depoimento desta quinta, Luis Miranda afirmou que o áudio apresentado por Dominghetti está editado, data de 2020 e se refere a uma relação comercial para compra e venda de luvas.
“Tenho o áudio aqui. Vou disponibilizar daqui a pouco um reconhecimento da conversa e da data. Eles querem ocultar algo muito grave! Ele [Dominghetti] está plantado aí dentro. Cavalo de Troia”, afirmou o deputado. O parlamentar também pediu que a CPI desse voz de prisão ao depoente.
A tese de que Dominghetti foi “plantado” na CPI para deslegitimar o depoimento de Luis Miranda foi defendida por diversos senadores da comissão, e também muito debatida durante toda a tarde nas redes sociais.
De acordo com a teoria, o cabo – que já publicou em suas redes postagens em apoio ao presidente da República, que já trabalhou na assessoria do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), e cujo pai mantém um blog de apoio a Bolsonaro – teria sido “plantado” por bolsonaristas como depoente por meio de denúncias contra o governo que não podem ser provadas, para com isso ganhar a oportunidade de tirar crédito do deputado Miranda, que denunciou o suposto esquema de fraude da Covaxin.
A hipótese também foi alimentada pela falta de relações contratuais entre Dominghetti, Davati e AstraZeneca. A partir da incongruência apresentada pelo depoente, o presidente da CPI, Omar Aziz (PSC-AM), apreendeu o celular do policial militar para ser inspecionado pela Polícia Legislativa.
Após a constatação de que se tratava de áudio editado para dar a entender que as conversas sobre um assunto se referiam a outro, Dominghetti afirmou que não sabia da adulteração do material enviado por Carvalho. Neste ponto, o próprio senador Aziz ameaçou dar voz de prisão em flagrante ao depoente por levar provas falsas à CPI, do que acabou por voltar atrás posteriormente.
Dominghetti é policial militar de Minas Gerais há 21 anos e trabalha como vendedor autônomo de medicamentos há pelo menos um ano e meio, com o objetivo de complementar a renda. Como intermediador de negociação de vacinas, começou a atuar a partir deste ano. Ele também teria atuado na negociação de outras vacinas para estados e municípios. A lei proíbe que policiais militares mantenham atividades profissionais paralelas, fora da corporação.
Na negociação em questão, seu rendimento seria de três a cinco “cents” (centavos de dólar) por dose vendida. Com a venda de 400 milhões de doses, Dominghetti ganharia US$ 12 milhões.
Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Fonte: Brasil de Fato
Edição: Vinicius Segalla