Há 1 ano, estudo do Exército pedia lockdown; link sumiu e governo ignorou sugestões
Há 1 ano, estudo do Exército pedia lockdown
Há exatamente um ano, o Centro de Estudos Estratégicos do Exército (CEEEx) publicou um documento que sugeria ao governo brasileiro uma série de medidas restritivas que, ao longo da pandemia, se convencionou chamar de “lockdown” – em português, confinamento.
O estudo foi retirado da página do CEEEx sem explicação cinco dias depois, quando o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) se manifestou explicitamente contra políticas de isolamento em massa.
O texto de 2 de abril de 2020, intitulado “Crise Covid-19: Estratégias de Transição para a Normalidade”, incluía entre as medidas necessárias “isolamento horizontal”, “preparação de instalações de isolamento para a população carente (hotéis, espaços públicos, escolas)”, “restrições ao movimento” e “redução da atividade aos serviços essenciais.”
O governo federal jamais adotou protocolo semelhante. Pelo contrário, Bolsonaro desestimula medidas restritivas e critica estados e municípios que impõem normas de confinamento.
Prefeitos e governadores estão autorizados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), desde 15 de abril de 2020, a restringir parcialmente a circulação de pessoas e o funcionamento de serviços não essenciais para evitar a disseminação da covid-19.
O CEEEx é um alto órgão estratégico do Estado-Maior do Exército, mas suas recomendações não foram levadas em conta pelo Ministério da Saúde mesmo no período em que a pasta foi comandada por um general da ativa.
Em 311 dias como ministro, Eduardo Pazuello não elaborou nenhuma medida de isolamento social em coordenação com estados e municípios nem estabeleceu orientações sobre o fechamento de serviços ou o retorno às aulas presenciais.
O Brasil de Fato entrou em contato com o CEEEx e com o Ministério da Defesa para entender por que o artigo foi retirado do ar e jamais voltou a ser publicado e por que suas recomendações foram ignoradas. Não houve retorno até o fechamento desta reportagem.
Embora o estudo tenha sido tirado do ar, o Exército não mudou de ideia sobre a gravidade da pandemia e a necessidade de aprimorar os cuidados. Com o avanço do vírus e sem vacinas para todos, integrantes de grupos de risco passaram ao regime de teletrabalho e todas as cerimônias militares foram suspensas nos quartéis.
A taxa de mortalidade pela doença é de 0,13% no Exército e de 2,5% no conjunto da população do país.
O que mais dizia o estudo
O documento do CEEEx foi elaborado em meio a um debate sobre isolamento horizontal ou vertical. Na segunda opção, defendida por Bolsonaro, apenas pessoas que integram grupos de risco da covid-19 precisariam mudar sua rotina para evitar aglomerações.
Uma semana antes da publicação do estudo, o capitão reformado pedia, por exemplo, a volta das aulas presenciais – ignorando o fato de que muitas crianças moram com pais e avós que podem integrar grupos de risco.
O retorno às aulas presenciais só aconteceu no último quadrimestre de 2020. Na maioria dos estados, o calendário teve que ser novamente suspenso em razão de surtos de coronavírus que provocaram o óbito de trabalhadores da educação.
O estudo do Exército diz que a implementação de qualquer medida alternativa ao isolamento horizontal exigiria “amplo esforço de testagem.”
“Há um consenso mundial, entre os especialistas em saúde, de que o isolamento social seja a melhor forma de prevenção do contágio, especialmente o horizontal, para toda a população”, diz o texto. Ainda segundo o material produzido pelo CEEEx, “é prematuro para que sejam elaboradas conclusões” sobre a eficácia do isolamento seletivo ou vertical.
O estudo cita cinco exemplos de países com resultados destacados no combate à covid até abril de 2020: Alemanha, Japão, Suécia, Coreia do Sul e Austrália. Dos cinco, a Suécia foi a que apostou declaradamente em uma política mais flexível de distanciamento social. Meses depois, o epidemiologista-chefe do país, Anders Tegnell, fez mea culpa e questionou sua própria estratégia, diante do aumento do número de infectados no país.
Entre as lições que foram possíveis extrair das experiências internacionais à época do estudo, o Ceex relata que “de maneira geral os países destacados fazem uso maciço de testes rápidos e empregam a tecnologia para acompanhar os indivíduos e dosar a intensidade das medidas restritivas.”
A gestão de Pazuello foi marcada, entre outros fracassos, pela quantidade de testes “encalhados” no Ministério da Saúde, sob risco de perder a validade. Em fevereiro de 2021, eram mais de 5 milhões nessa situação. Na época, o general e então ministro disse ao Senado que os testes estavam parados porque não houve demanda dos estados.
A publicação do CEEEx já alertava para a possibilidade de uma “segunda onda” do vírus. Ou seja, uma eventual queda ou estabilização nos números de contaminados não seria motivo para relaxamento.
Impacto econômico
Preservar a economia do país é o pretexto central do governo Bolsonaro para não apoiar medidas de isolamento social desde o início da pandemia.
Essa dicotomia é falsa, segundo o documento do órgão estratégico do Exército de abril de 2020.
“O dilema entre salvar vidas e manter a atividade econômica, que se apresenta nesse momento de crise, é apenas aparente”, afirma o estudo, que recomenda “medidas de apoio governamental a diversos segmentos econômicos.”
“Não obstante a premente e clara necessidade de priorizar a vida dos seus cidadãos”, o texto diz que um lockdown prolongado poderia levar a um colapso econômico e propõe caminhos para uma retomada segura da atividade econômica.
Nunca houve um plano nacional de fechamento e abertura, em coordenação com os estados e municípios, considerado essencial pelo CEEEx.
“É possível identificar a relevância do papel do Estado na mitigação dos efeitos negativos da crise, bem como a centralidade da sua atuação como indutor e protagonista do grande processo de recuperação que, inevitavelmente, terá que ocorrer”, dizem os autores, não identificados.
“Diante do tamanho do desafio, (…) parece clara a necessidade de coesão nacional e de definição de estratégias eficazes e claras”, acrescenta o estudo. O CEEEx elogia, por exemplo, o Japão, pela “estreita coordenação” entre a gestão municipal e o Ministério da Saúde.
Na contramão dessa orientação, o governo brasileiro entrou em conflito com prefeitos e governadores e recuou ou se contradisse em quase todos os temas relacionados à covid: medicamentos sem eficácia comprovada, uso de máscaras e vacinação.
A posição contrária de Bolsonaro sobre o confinamento em massa é uma das poucas que permanece fixa – embora os quatro ministros que chefiaram a pasta da Saúde na pandemia tenham reconhecido, ao menos uma vez, a importância do distanciamento social.
Longe de um consenso
O CEEEx ressalta que a Organização Mundial da Saúde (OMS) é a “principal referência na área” e reforça a importância de seguir seus objetivos estratégicos. A família Bolsonaro e o ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, pelo contrário, questionaram ou ironizaram várias vezes as recomendações do órgão internacional.
Em junho de 2020, o presidente sinalizou que o Brasil poderia sair da OMS – a exemplo do presidente Donald Trump, dos EUA, que havia rompido com a organização um mês antes.
Na parte final do estudo, os autores citam novamente que o “consenso [entre municípios, estados e governo federal] deve ser construído de forma urgente. Não parece razoável uma quebra de governabilidade num momento tão crítico. (…) Fica claro que o objetivo central será o de proteger a vida.”
Ao desencorajar os cidadãos a ficarem em casa, por meio de discursos ou do atraso e defasagem do auxílio emergencial, Bolsonaro e sua equipe percorrem exatamente o caminho que o CEEEx apontava como temerário.
“Observa-se que a adoção precoce de medidas de isolamento horizontal tem apresentado resultados parciais mais efetivos, no achatamento da curva”, aponta o estudo. “Sem um consenso e uma estratégia muito bem definida, será difícil convencer a população, sobretudo os mais pobres e informais, a ficarem confinados.”
Por fim, o Ceeex conclui que o Brasil necessita da “definição de um protocolo de retorno à normalidade que estabeleça parâmetros e orientações globais.”
Há mais de um mês, o Brasil é considerado o epicentro global da covid-19, com média de mortes superior a 3 mil por dia. De acordo com o balanço desta quinta-feira (1º) do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass), 3.769 mortes foram registradas em 24 horas.
Edição: Poliana Dallabrida
Foto: Mauro Pimentel/AFP
Fonte: Brasil de Fato